ECA, 20 anos de conquistas e desafios
01/09/2010 por Fundação Abrinq
Legislação trouxe novo olhar para a questão dos direitos da infância e juventude, mas sofre com a falta de implementação e tentativas de alteração de seu conteúdo.
Por Tatiana Merlino
Passados 20 anos da promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), especialistas avaliam que a lei representa um grande avanço na questão do direito à infância e juventude. No entanto, alertam para um grande desafio: sua efetiva implementação. Sancionada em 13 de julho de 1990, a lei 8.069 representa um marco social e jurídico acerca dos direitos do menor de idade. “O ECA rompeu com um passado de negligência com relação aos direitos infanto-juvenis, marcados apenas por repressão, limpeza social, assistencialismo vicioso, criminalização da pobreza. A legislação estabeleceu a proteção integral às crianças e aos adolescentes”, afirma o advogado Ariel de Castro Alves, conselheiro do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda) e vice-presidente da Comissão Nacional da Criança e do Adolescente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).
Ele explica que, com a legislação sobre o tema anterior ao ECA, o Código de Menores, “vigorava a doutrina da situação irregular, pela qual o menino de rua, a menina explorada sexualmente, a criança trabalhadora, o adolescente infrator, o menino vítima de tortura, entre outros exemplos de violações, estavam em `situação irregular` e deveriam ser `objeto` de intervenção dos adultos e do Estado, já que não eram considerados `sujeitos de direitos`”.
Com a nova legislação, a criança e o adolescente passaram a ser reconhecidos como sujeitos de direito, aponta Lúcia Toledo, coordenadora da comissão da infância e do adolescente do Conselho Regional de Psicologia de São Paulo. “É um grande avanço, pois os direitos da criança passaram a ser pensados, preservados. E o ECA, assim como a Constituição, estabelece quem tem que zelar por esses direitos: além do Estado, a sociedade e a família são responsáveis.”
Varas da infância
No entanto, apesar disso, há muitos desafios a serem enfrentados, entre eles a falta de prioridade dada ao Sistema de Justiça da Infância e da Juventude. Segundo pesquisa da Associação Brasileira de Magistrados, Promotores de Justiça e Defensores Públicos da Infância e da Juventude (ABMP) realizada em 2008, apenas 92 comarcas possuem varas da infância – o que corresponde a 3,4% das 2.643 comarcas de todo o país. A pesquisa também apontou grande disparidade entre as regiões: enquanto no Norte existe um juiz especializado para 279 mil habitantes, no Sudeste essa relação é de um juiz para 503 mil habitantes. De acordo com Eduardo Rezende Melo, juiz da Vara da Infância e da Juventude, e ex-presidente da ABMP, “o número e a estruturação de varas são campos a serem trabalhados”. Ele explica que o ECA prevê que os tribunais deveriam estabelecer um critério populacional para a criação dessas varas. “Na Justiça, não se dá prioridade à infância e à juventude como estabelecido na Constituição. Os juízes têm de trabalhar em outras áreas e não têm tempo suficiente para se dedicar à criança e ao adolescente”. Além disso, explica, “as varas não possuem número suficiente de funcionários para o atendimento adequado”.
Outra dificuldade é em relação à precária formação de magistrados, promotores e defensores públicos na questão do direito à infância e juventude. Apenas em 2008 o MEC obrigou os cursos de Direito a incluir a matéria “Direito da criança e do adolescente” na grade curricular. E só em 2009 o Conselho Nacional de Justiça estabeleceu que, nos concursos para juiz, o ECA deveria entrar como matéria.
“Os operadores da lei não têm vivência em direito da criança e do adolescente. Além disso, muitos cursos de Direito mantiveram o Código de Menores na grande curricular. Assim, ficam sem noção da lei, com uma visão pautada pela legislação anterior”, explica Givanildo Manoel da Silva, militante do Fórum Estadual de Defesa dos Direitos da Criança e Adolescente. Para ele, a Justiça não tem dado atenção devida ao tema da infância.
Sistema de garantia
Na opinião da psicóloga Lúcia Toledo, embora o assunto esteja na “ordem do dia”, a legislação ainda é muito pouco conhecida. “Ela ainda não é estudada nos bancos escolares. Nem quem vai trabalhar no sistema de garantia nem os próprios adolescentes conhecem direito o ECA. A gente não tem, de fato, uma defesa intransigente dos direitos da criança e do adolescente. Isso ainda não é realidade”, acredita.
Outro aspecto levantado por especialistas da área é em relação à estrutura dos Conselhos Tutelares existentes no país. Criados por lei a partir da promulgação do ECA, são órgãos municipais destinados a zelar pelos direitos das crianças e adolescentes. Hoje, há 5.772 conselhos instalados em todo o país, número que representa um aumento de 23,24% em relação a 2006, quando havia 4.657, segundo pesquisa feita pela Agência de Notícias dos Direitos da Infância (Andi). Porém, a maioria deles carece de estrutura para desenvolver seu trabalho.
O defensor público Flávio Frasseto, coordenador do Núcleo Especializado da Infância e Juventude da defensoria pública de São Paulo, explica que a criação dos conselhos foi uma grande aposta do estatuto, com a “perspectiva de que a participação popular é muito importante na questão do direito à infância e que a proteção dos direitos tinha de ser desjudicializada”.Segundo ele, se os conselhos não existissem, haveria muito mais violações. “Por isso, gosto de destacar o trabalho deles para minimizar as violações contra a criança e o adolescente”. Porém, Frasseto pondera que “eles estão longe de atingir os níveis de excelência que a gente pensou quando desenhou essa proposta”. Entre os problemas apontados, está a dificuldade ligada ao processo eleitoral de escolha dos conselheiros tutelares. “Há situações em que conselheiros não representam segmentos de proteção da criança e do adolescente”. Apesar disso, como balanço geral, o defensor público acredita que a experiência dos conselhos positiva, “com uma ressalva: deveriam ser muito mais do que são e poderiam atender muito mais casos do que conseguem se não fossem alguns problemas, como falta de estrutura e recursos humanos”.
Para ele, a dificuldade de mudança cultural para uma visão que reconhece a criança como sujeito dificulta a implantação do ECA. Segundo Frasseto, caso essa mudança estivesse consolidada, a atual discussão acerca do “fim da palmada” não seria necessária. “Se a cultura do mundo adulto em relação à infância tivesse se alterado, isso não estaria em pauta”. Porém, ele acredita que, para implantar efetivamente a legislação, “a gente teria de mudar totalmente o país. Se não houver uma redução drástica do nível de pobreza e discriminação social, o estatuto nunca será plenamente concretizado. A má distribuição da riqueza é a grande inimiga da concretização do ECA”.
Indicadores sociais
Frasseto afirma ainda que, apesar das dificuldades, de uma forma geral, “a gente caminha bem. Houve diminuição do trabalho infantil, há esforço no sentido da inclusão escolar, estamos melhorando os índices de gravidez na adolescência”. O advogado Ariel de Castro Alves também reconhece os avanços ocorridos ao longo dos 20 anos de ECA, como a redução de 60% da mortalidade infantil. “Eram mais de 60 mortes para cada grupo de mil crianças que nasciam; hoje, são 19 mortes por mil nascidos.” Em relação ao trabalho infantil, o advogado também destaca a redução dos índices. Atualmente, segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT), 4,2 milhões de crianças e adolescentes no Brasil são explorados no trabalho infantil.
Porém, apesar desse alto índice, nos últimos 19 anos a redução foi de 50% e os esforços para tal foram reconhecidos pela própria OIT e pela Organização das Nações Unidas (ONU). Já no que tange à educação, conforme o Ministério da Educação e o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), 98% das crianças estão matriculadas no ensino fundamental e 82% dos adolescentes, no ensino médio, “mas é notória ainda a baixa qualidade do ensino em boa parte das escolas públicas”, destaca Alves.
Outra conquista do ECA foi a diminuição de casos de gravidez na adolescência. O número de partos de meninas entre 10 e 19 anos realizados na rede pública caiu 30,6% nos últimos dez anos. De acordo com dados do Ministério da Saúde, em 2008 foram feitos 485,64 mil partos, contra 699,72 mil feitos em 1998.
Reportagem publicada na Revista Caros Amigos/Ano XIV – nº 161 / 2010
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